top of page
  • Foto do escritorMariene Lino

Eleições começaram cedo em Rio das Pedras, revelam moradores

Atualizado: 27 de jun. de 2022

Relatos evidenciam que democracia é frágil em territórios dominados por traficantes e milicianos no Rio de Janeiro, como explicam especialistas


Comunidade de Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, é dominada pela milícia (Foto: Fábio Costa)


A quatro meses das eleições, sem que a campanha política tenha começado, os moradores de Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio, já dispõem de um “candidato da comunidade”. Não se trata de um nome retirado do consenso entre a comunidade ou escolhido pela dedicação ao local. Protegida pelo anonimato, uma moradora revela que as movimentações no bairro indicam que o nome do favorecido já está decidido.


Rio das Pedras será, mais uma vez, um exemplo de como a democracia está fragilizada em áreas dominadas pelo poder paralelo. O relato da moradora deixa claro que a região será “fatiada”, independentemente do desejo do eleitorado. Para Leandro Marinho, pesquisador do Programa de Direito à Vida e Segurança Pública do Observatório das Favelas, o fenômeno ocorre porque os grupos armados seguem uma dinâmica própria para manter o chamado “poder de matar”, “comprado e vendido”. Segundo ele, esse modus operandi visa a garantir e manter os poderes econômico e político nas comunidades, onde a população fica submissa:


– Quem tem as “conexões corretas” consegue controlar um território muito grande e, consequentemente, um eleitorado imenso. Isso ocorre de diversas maneiras, desde a propaganda mais subjetiva até as propostas efetivamente.


Com atuação em campanhas eleitorais há mais de quinze anos, a moradora detalhou que, na comunidade, as ações se baseiam em mobilização de equipes. Essas são responsáveis pela articulação entre o candidato e a população, seja por palavras ou práticas junto aos potenciais eleitores. Nesse cenário, há uma demarcação dos espaços: cada grupo só pode atuar em determinados locais, sem “invadir” áreas de outros. “Eu queria muito fazer uma campanha aqui para um [Marcelo] Freixo da vida, mas não vou fazer, porque isso me coloca em risco”, resumiu ela.


A moradora se recordou do pleito municipal de 2020, em que, para ela, as divisões ficaram bastante evidentes, mesmo com uma liberdade maior para levar candidatos “de fora”.


– [Em 2020] consegui mobilizar bem, mas os territórios eram demarcados. Tipo assim: “aqui não entra outro candidato”. Então a gente ficava em outros pontos, com outras estratégias. E a gente não se coloca muito em conflito, porque a campanha vai e a gente fica. Como eu também trabalho muito com o social aqui dentro, não posso ficar muito visada. Isso pode me prejudicar no futuro – explica a moradora.


Cenário em 2018


De acordo com a mulher, as circunstâncias foram bem diferentes nas eleições de 2018, pleito em que Jair Bolsonaro (PL) foi eleito presidente. Ela relembrou que a campanha precisou ser bem mais “contida”, sem camisas ou adesivos de outros candidatos, por exemplo. Na visão dela, os assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em março de 2018, mudaram a intensidade de ataques mais diretos contra e entre equipes. Segundo ela, hoje, com a tramitação de investigações relacionadas ao caso, os grupos armados começaram a agir de modo mais sutil.


– Trabalhar com política é muito diferente “pós-Marielle”. Existe uma certa preocupação de não hostilizar, não chegar em cima, até porque isso aconteceu várias vezes na última eleição e foi a público. Sinto que estão muito cautelosos com relação à liberdade de se trabalhar com outros postulantes a cargos. Mas, claro, quem mora na comunidade tem que saber lidar com isso – pontuou.


Enquanto moradora de Rio das Pedras, ela garantiu que nunca foi diretamente obrigada a votar em alguém ou, até mesmo, ameaçada no contexto eleitoral. Outro morador do bairro, também sob anonimato, corroborou essa versão. O homem relatou que, em eleições anteriores, foi obrigado a fixar placas em sua residência para “divulgar” candidatos, o que, hoje, é proibido. No entanto, ele considerou que essa era uma forma sutil de coação, e não o chamado “pedido explícito de voto”. Assim como a mulher, ele declarou que, em 2020, candidatos “de fora” puderam entrar e houve uma sensação maior de liberdade – em comparação com o que já vivenciaram antes.


Longe do ideal democrático


Embora moradores tenham destacado um cenário relativamente otimista, especialistas e estudiosos em segurança pública ponderaram que as situações descritas por quem mora em comunidades passam longe do ideal em um regime democrático.


Cada vez mais, a milícia avança no domínio de serviços essenciais, como gás, TV a cabo e comércio. Para o professor Rafael Soares Gonçalves, do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio, a progressão no controle de territórios, por meio de atividades que integram o “mercado” dos grupos armados, acentua o que chamou de “imposição da lei do silêncio”, em que as discussões em sociedade são cerceadas.


– Sem a possibilidade de fala, tem-se poucos espaços de práticas coletivas e de exercício da democracia. Isso vai desde beber uma cerveja ali na esquina até pensar em como se pode melhorar o bairro. Essas dimensões são importantes nas práticas cotidianas para que a sociedade as repense. Porém, isso precisa do “falar”, do debate nos espaços de diálogo. A lei do silêncio dificulta esse processo – colocou Gonçalves.


A diretora-executiva do Instituto Fogo Cruzado, Cecília Olliveira, apontou que, diante da falta do que é básico, a população vê os políticos como pessoas que vão ajudá-la a ter uma vida melhor. Nesse contexto, diante das ameaças que sofrem por parte de quem domina a comunidade, acabam por votar em quem promete melhorias. Cecília afirmou que esse processo dificulta uma mobilização política orgânica, pois os moradores são usados como instrumentos para a ascensão política.


– É muito difícil que qualquer mobilização política espontânea floresça e ganhe força em um local onde um grupo armado determina tudo. Candidatos não podem entrar em algumas favelas e bairros, por exemplo. São elementos que influem no voto dos moradores daquela região, porque eles veem nessas melhorias a esperança de mudar a realidade de onde vivem. Embora isso aconteça também em bairros onde a milícia não está presente, estas ações precisam ser analisadas levando em conta também o período pré-eleitoral, já que elas vêm acompanhadas de truculência diária, extorsão, ordens que podem custar vidas, punições físicas e armas – esmiuçou ela.


Leandro Marinho frisou que esse sistema é cíclico: determinados líderes ascendem, apropriam-se dos espaços em que exercem poder e alimentam o próprio capital. E isso influencia diretamente nas eleições.


– O “poder de matar” garante o controle territorial, econômico e político, como uma lógica de mercado. Isso faz com que determinados grupos tenham acesso aos recursos e aos cargos da política, além de tudo que envolve o controle de zonas eleitorais, como os votos em si. Em relação às consequências, às vezes nem precisa se chegar às vias de fato, como um assassinato, mas é preocupante o simples fato de se ameaçar veladamente, como passar com um carro na rua, mandar alguma mensagem ou dar um tiro no portão de um candidato. De qualquer forma, são as vidas das pessoas que estão em jogo – considerou Marinho.


Tráfico X Milícia


Embora traficantes e milicianos tenham, em geral, objetivos similares, como dinheiro e poder, o modo de agir dos dois grupos é diferente. O antropólogo e cientista social Luiz Eduardo Soares explicou que o tráfico só existe graças a uma espécie de parceria com a sociedade e a polícia. Por outro lado, a milícia já traz para si ex-integrantes das forças policiais e Armadas. Segundo o escritor, isso interfere em como cada grupo atua no período eleitoral.


– No caso dos traficantes, o acesso dos candidatos é negociado com o “dono do morro”. Nesse sentido, a exclusividade é mais cara. Garante a eleição? Não, mas dá larga vantagem. De certa forma, é um poder mais “limitado”. Com a milícia, é diferente. Pessoas com vínculo mais forte com a polícia e influências locais perceberam que elas mesmas podiam se candidatar. E, claro, são capazes de saber quem votou em quem e punir moradores. As pessoas então ficam intimidadas e escolhem não “trair” – detalhou Soares.


Fonte de renda


Leandro Marinho assinalou que criminosos que integram grupos armados usam do dinheiro oriundo de práticas ilícitas para retroalimentar esse “sistema econômico” próprio. O pesquisador citou uma candidatura na Baixada Fluminense que, nas eleições municipais passadas, desembolsou R$ 1 milhão para campanha. Metade desse valor foi usado para compra de votos.


O advogado Bruno Cabral, especialista em Direito Eleitoral, expôs que práticas características de grupos armados podem incorrer em crimes como abuso de poder econômico, que consiste no uso excessivo de recursos materiais ou humanos para beneficiar determinado candidato. De acordo com ele, isso afeta o andamento e a integridade do processo eleitoral.


– A interferência da criminalidade na política invariavelmente traz o poder financeiro desse dinheiro ilícito pelos personagens que permeiam esses dois mundos, sejam tráfico ou milícia. Há uma migração do poder político, e um dos resultados pode ser o abuso de poder econômico. E, claro, isso desequilibra as eleições e atinge a democracia – apresentou Bruno.


Papel do Estado


Cecília Olliveira argumentou que há uma “não atuação” do Estado no combate à atuação de grupos armados. Ela assegurou que, no âmbito eleitoral, a dinâmica de violência e política acontece “antes, durante e depois” do pleito, e que, por isso, atitudes mais concretas deveriam ser tomadas, com uma visão de futuro.


– Quando se faz alguma coisa, a ação é focada nas eleições. É comum acompanharmos notícias de policiamento reforçado nos domingos de votação. Mas na segunda-feira tudo volta ao normal. Não há um projeto do governo do estado, ou mesmo federal, comandado pelo TSE, para monitorar movimentações e interferência de grupos armados e agentes políticos. Por um lado, políticos recebem ameaças, são proibidos de atuar em determinados locais e sofrem atentados a tiros. Por outro, milicianos se elegem e assumem cargos de confiança. A situação piora diante da inércia do poder público – salientou Cecília.


Leandro Marinho concordou e complementou com o fato de, segundo ele, os grupos armados terem muito poder por estarem articulados com setores das instituições do sistema de Justiça:


– Poderíamos ter eleições de fato democráticas nessas comunidades se as instituições funcionassem de acordo com seus papéis constitucionais e não estivessem à mercê dos interesses privados de determinados grupos. As polícias estão comprometidas, o Ministério Público está comprometido, assim como a própria Justiça Eleitoral.


Outro lado


A reportagem pediu um posicionamento ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a respeito do que foi apontado pelos especialistas. Até 17h de sexta-feira (24/6), o órgão ainda não havia retornado o contato.


92 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page